segunda-feira, 12 de julho de 2010

EC 62 e a responsabilidade do Judiciário pelo cumprimento dos precatórios

Marco Antonio Innocenti*

Ao instituir diversas responsabilidades operacionais ao Poder Judiciário, a Emenda Constitucional 62/2009, que modificou o regime constitucional dos precatórios, parece ter instado nos tribunais, especialmente nos que exercem jurisdição estadual, a iniciativa de resgatar atribuições administrativas garantidoras da eficácia do cumprimento dos débitos judiciais de estados e municípios, cuja relegação contribuiu para a situação de inadimplência dessas dívidas pelas entidades públicas devedoras.

De fato, por muito tempo os tribunais toleraram a inadimplência dos governadores e prefeitos, permitindo que deixassem de pagar débitos judiciais decorrentes de decisões transitadas em julgado, atitude que foi respaldada pela decisão do Supremo Tribunal Federal de negar a possibilidade de intervenção federal, prevista na Constituição Federal, como garantia de cumprimento dos precatórios.

A partir dessa decisão do STF, a inadimplência dos débitos judiciais, que nunca foi mesmo encarada pelo Poder Judiciário como uma agressão à sua autonomia e independência, embora claramente o seja, passou a ser problema exclusivo dos credores e de seus advogados, sem remédios legais para fazer cumprir a condenação que o Estado-juiz impôs ao Estado-administrador. Daí para frente, a situação degringolou, a ponto de os precatórios estaduais e municipais deixarem até mesmo de ser previstos nos orçamentos da maioria das entidades devedoras.

Há que se reconhecer, por outro lado, que essa atitude do Poder Judiciário encontra boa dose de explicação nas políticas fiscalistas dos governos estaduais, que nos últimos anos transformaram os TJs dos estados em reféns de orçamentos ditados pelos interesses dos Poderes Executivos locais. Quando os tribunais estaduais não têm sequer autonomia orçamentária para atender às suas necessidades básicas de infraestrutura, é compreensível que também não tenham condições de impor a governadores e seus secretários de Fazenda o cumprimento dos precatórios judiciais.

Todavia, a forte rejeição da sociedade ao projeto que resultou na EC 62, inclusive por lideranças da magistratura nacional, parece ter despertado nova percepção nos tribunais. Dependendo da forma com que vierem a encarar a EC 62, festejada por prefeitos e governadores como a institucionalização de mais um calote nos débitos judiciais, esta poderá não ser interpretada e aplicada pelo Judiciário propriamente como um regime de moratória.

Nessa perspectiva, há que se ter em mente que o que distinguirá a EC 62 – ou como solução técnico-orçamentária apta à solução definitiva da inadimplência dos precatórios, ou simplesmente como uma saída política para permitir que os precatórios continuem a não ser pagos – será o rigoroso controle, por parte dos tribunais, da destinação regular de recursos orçamentários para quitação de precatórios, em níveis compatíveis com a redução gradual do volume mensal dos débitos judiciais em atraso.

E a julgar pelas primeiras regulamentações baixadas pelos tribunais estaduais em torno da EC 62, inclusive pela resolução aprovada em 29/6 pelo Conselho Nacional de Justiça, dispondo sobre a unificação da gestão dos precatórios e a criação do cadastro de entidades devedoras inadimplentes, fica claro que o Judiciário está mesmo disposto a adotar uma postura mais ativa no controle e fiscalização dos repasses dos recursos para pagamento de precatórios.

Parece ser essa também a disposição revelada, por exemplo, na recente regulamentação baixada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo em torno da EC 62, adotando como pressuposto maior a diretriz de não mais tolerar as manipulações orçamentárias que redundaram, na última década, na brutal escalada dos estoques dos precatórios em atraso do Estado de São Paulo e dos municípios sujeitos à sua jurisdição, acenando com a possibilidade de sequestro dos recursos necessários à efetiva redução desses estoques e majorando coercitivamente o fluxo mensal de recursos a serem depositados para tal finalidade.

De autoria do Desembargador Venício Salles do TJ-SP, as Resoluções 01 e 02, de 2010, demonstram que é possível fazer do limão uma limonada, transformando a EC 62 em regime verdadeiramente de pagamento e não de calote dos precatórios. Nesse contexto, o TJ-SP não poderá admitir, por exemplo, que o governo paulista ou a prefeitura paulistana destinem para os precatórios, neste ano, volume de recursos menor do que aquele que já vinham destinando nos últimos exercícios anuais, tendo em vista que o estoque da dívida de ambos continua crescendo. Se o fizerem, sofrerão sequestro da diferença necessária à redução gradual do estoque das respectivas dívidas.

É que o § 2° do art. 97 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) não limita o comprometimento obrigatório de receitas que as entidades devedoras deverão destinar para pagamento dos precatórios aos percentuais lá indicados; ao contrário, indica apenas a receita mínima a ser destinada para tal finalidade, podendo ser majorada compulsoriamente pelos tribunais sempre que não se verificar diminuição do volume dos precatórios, sob pena de sequestro. Eis a pedra de toque do regime especial, cuja aplicação, fundada nos princípios de direito e não na conveniência de secretários de Fazenda, poderá escoimar a maioria das inconstitucionalidades apontadas nas ADIs nºs 4.357, 4.372, 4.400 e 4.425, propostas, respectivamente, pela OAB, Anamages, Anamatra e CNI contra a EC 62.

Se os tribunais, de fato, estarão mesmo dispostos a enfrentar estados e municípios, submetendo-os à redução gradual dos débitos judiciais, é exercício de futurologia, mas os primeiros passos já foram dados, trazendo a esperança de que a EC 62 represente, na sua efetiva aplicação, muito mais do que mero artifício para permitir que estados e municípios continuem descumprindo ordem judicial e afrontando a autonomia e independência do Poder Judiciário.

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